Acho que foi um indígena norte-americano que, num misto de admiração e medo, explicou o que sentia aos colonizadores ingleses: “Se você tem uma tradição e come da carne de outras tradições, você aumenta sua tradição, aumenta o rabo dela. Mas se você abandona sua tradição e passa a comer só da carne de outra, você deixa de ser cabeça e passa a ser rabo: que não sabe para onde vai, apenas segue”.
O indígena estava preocupado com a influência do colonizador. Tinha todas as razões para isso. Mas, além da influência de uma cultura sobre a outra, há divisões internas de uma cultura que também se influenciam – uma divisão desse tipo é aquela imposta pelos que se vêem como possuidores de um gosto superior, mais apurado: entram aí a “alta cultura”, a “cultura erudita”, as “vanguardas” e afins. Essa divisão está representada no mito da rivalidade entre os deuses Apolo e Dionísio.
Apolo e Dionísio são dois dos principais deuses do panteão latino. Deuses de várias coisas, entre elas, da arte. Ambos são considerados os deuses da arte – isso gera muita confusão, mas é a representação mitológica do fato de haver, sob uma única palavra, dois sentidos distintos (mas nem tanto): a arte dionisíaca e a arte apolínea.
Dionísio usa a arte como um meio para alcançar o deleite da carne, o deleite mundano. Aliás, ele é o único importante deus latino que é filho de uma humana.
Já Apolo busca o deleite na contemplação do belo, o deleite divino. Este é o deus daqueles que ficam enojados com a arte de entretenimento e a consideram como indigna ou mesmo como profana, é o caso do crítico de cinema que adora Godard e sente ânsias assistindo “Duro de Matar III”.
Porém, de tempos em tempos, a arte dionisíaca merece o interesse dos apolíneos.
Vejamos o caso da música popular.
O jazz dos EUA, até os anos 20 do século passado, era visto com completo desprezo por aqueles que se pretendiam a elite cultural norte-americana. É nos anos 30 que o jazz começa a ser visto como uma forma “verdadeira” de arte por eles. Aliás, os apolíneos dividem a arte em “verdadeira e falsa”. Os dionisíacos a dividem mais como “divertida e chata”.
O swing jazz foi o ritmo mais popular do mundo em seu tempo e era, como é até hoje, absolutamente desprezado pelos refinados amantes do jazz.
Talvez nunca os apolíneos modernos aceitem o fato de que a maioria das pessoas sempre cultuará a Dionísio. E só. Os gregos lidavam muito bem com isso: chamavam essa incapacidade natural da maioria das pessoas de se deleitarem com o belo de apeirokalia. Viam como um simples fato da vida. A grande maioria não quer o belo: quer o vinho e quer a farra. O swing jazz foi mais popular que o cool jazz não por falta de acesso do povo à cultura, por falta de educação deste, por falta de vergonha na cara ou por qualquer uma dessas desculpas que os apolíneos vivem inventando. O swing jazz, assim como o sertanejo, como a banda Calypso e como o rock’n roll em suas origens (para o estranhamento dos roqueiros de hoje, que são apolíneos) eram mais populares porque eram filhos bêbados, animados e depravados do deus Dionísio – bem do jeito que o povo gosta.
O mesmo aconteceu com o samba carioca. Foi Mário de Andrade que adotou o samba como a pedra fundamental de seu projeto de cultura nacional apolínea. E foi sob a indicação desse bispo da igreja apolínea do Brasil que o samba recebeu então o selo episcopal de “arte verdadeira”. A dedicação dos apolíneos fez surgir o samba canção, abossa nova e parte do que chamamos de MPB.
O melhor disso é que, diferentemente dojazz, o nosso samba – como uma mulata assanhada – deu cria pra todo lado, não só com o belo e garboso do Apolo (como ocorreu com o jazz), mas também com o depravado do Dionísio. Hoje temos o “pagodinho”, por exemplo, que, como todo filho legítimo de Dionísio, possui duas características inescapáveis: a primeira é ser extremamente popular, e a segunda é atrair o mais sincero nojo dos apolíneos. E temos hoje o chamado samba cult, o meio-irmão do outro, mais bem vestido, obediente à mãe e com a cara de sério do pai, Apolo. Como toda cria genuína de Apolo, um primado de virtude e beleza combinado com o absoluto desprezo por parte da sempre filistina massa popular.
Já, aqui em Goiás, nossos apolíneos nunca se animaram em comer da carne cultural local. Nossa chamada “música sertaneja” nunca foi assediada pelo deus Apolo, nunca recebeu dele nem uma cantadinha, um fiu-fiu, um olhar cobiçoso que fosse, nada. Desprezada pelo belo deus, ela só namora o deus bêbado. Nisso, toda sua produção é como que um sinônimo do dionisíaco brasileiro. Falar em música sertaneja hoje é o mesmo que falar em festa, bebidas, alegria, farra, e nem um pingo de pretensão estética – tudo cheirando ao álcool do deus bebum –, aliás, essas são as mesmas coisas que se poderia dizer do swing jazz e do samba carioca nos anos 30.
Registro aqui meu lamento: gostaria de ver os filhos que a música popular goiana daria com Apolo. É um lamento porque sei que não os dará. Os apolíneos daqui satisfazem seus anseios investindo em outras tradições. Goiânia tem uma das cenas de rock mais fortes do Brasil e não é à toa. É uma indignada reação de oposição à própria tradição cultural. E a festa que nossos apolíneos fazem na mesma semana da Festa Agropecuária (a principal festa dionisíaca desse Estado) é chamada de “Bananada”, isso porque simboliza “dar uma banana” para o sertanejo e para o que ele representa. Na verdade, a banana não é para a cultura sertaneja, é para Dionísio (serviria então para o Calypso, a Micareta, o “pagodinho”, a Britney Spears e afins). Dionísio deve vomitar vinho de tanto gargalhar vendo a supremacia que seus sátiros impuseram a toda nossa cultura. Quem recebe a banana é a cultura goiana. Ela fica com a banana do Dionísio na mão.
Marcelo Barra, Fernando Perillo, Maria Eugênia e congêneres são outro caso. Eles são apolíneos da cultura musical urbana goiana novecentista – original principalmente da antiga Vila Boa e de Pirenópolis–, com suas modinhas e serestas. Representam uma sub-cultura goiana preciosa, mas menos pujante – talvez como o choro em comparação com o samba – e que, absolutamente ignorada pelos nossos dionisíacos, também não recebe a menor atenção dos nossos fiéis apolíneos. Abandonada, ela só se mantém sendo artificialmente bancada pelo Estado. Os nossos apolíneos aqui – quase todos – são devotos é do rock’n roll.
O roqueiro que estiver lendo isso talvez pense: “Apolíneos?! Nós somos irreverentes, bêbados e abusados. Somos filhos de Dionísio!”. Não são. Não os de hoje. Esses artifícios que simulam traços dionisíacos estão inseridos numa pretensão estética elitista e quase pedante. Se o rock ainda fosse dionisíaco como foi no início, os roqueiros atuais cuspiriam nele. A obsessão por sentir que fazem parte de uma elite cultural (aliás, o rock’n roll como símbolo elitista é um dos acontecimentos mais esquisitos da história cultural ocidental) os impede de olhar para qualquer coisa verdadeiramente dionisíaca sem o esnobismo de uma princesa de Versalhes.
É aí que me vejo na mesma situação daquele índio apache, pensando no que será dessa nossa cultura sendo que nossos apolíneos – que são as pessoas capazes de dar novas dimensões estéticas a uma expressão artística – se tornaram rabo de outras tradições. O rock aqui não é colocado a serviço da nossa tradição, como Caetano Veloso o fez com a maestria do gênio, nem como mistura enriquecedora, como aconteceu no reggae jamaicano. O rock aqui vem seco, chapado, sem suco pra engolir. Olho para os nossos roqueiros goianos e vejo os meninos japoneses que vi tocando samba – e que mereceram toda a minha complacência, a complacência que reservamos para quem nos é inofensivo e desimportante.
Enquanto isso os dionisíacos aqui ofendem. E importam. E nós ficamos com a banana na mão.