segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Entre Sandy e Simone de Beauvoir
Como eu sei admirar as pessoas autênticas! A pessoa autêntica é aquela que em algum momento decidiu desenvolver sua própria personalidade ao máximo.
Minha ideia aqui é explicar o que entendo por autenticidade. Para isso cito duas pessoas absolutamente diferentes, mas com uma só coisa em comum: a autenticidade. Essas pessoas são Sandy e Simone de Beauvoir.
Você deve ter dito agora: Sandy?!! Sim: Sandy. A irmã do Junior, filha do Chitãozinho e Xororó (para mim é filha dos dois, porque eu nunca sei de qual dos dois...). A autenticidade de Simone é hoje mais do que reconhecida: a instigante esposa de Sartre, que quebrou todas as convenções que não lhe faziam sentido, que criou uma nova maneira de ser mulher, de ser esposa, de ser francesa, de ser humana. Mas a autenticidade de Sandy é muito pouco reconhecida... ainda. As mesmas pessoas que elogiam Simone criticam Sandy. Nem toda pessoa muito criticada é autêntica, mas toda pessoa autêntica é muito criticada. Simone foi muito criticada em sua época também. Hoje topei com esse desabafo da Sandy: “Não sou frágil como imaginam, é que engano porque sou pequenininha.”
Há um bom tempo que penso em fazer uma espécie de "ode à Sandy". Não pela sua beleza. Acho ela uma gracinha - mas não a ponto de lhe dedicar uma ode por isso. Faço uma ode à sua personalidade.
Para entender o que eu vejo na personalidade da Sandy, você precisa analisar o contexto em que ela vive. Depois que a Madona inventou – e a Britney Spears comprovou – que cantora que dá uma de “perva” faz mais sucesso, toda cantorazinha bonita que surge tem que se esforçar ao máximo para parecer que é pelo menos 3 vezes mais piranha que a moça que está rodando bolsinha na esquina. Imagino quantas vezes a Sandy – pelo menos desde os seus 14 ou 15 anos – teve que recusar o “conselho profissional” de marqueteiros e agentes desse ramo de que ela deveria fazer uma cara de vagabunda em algum videoclipe para tentar vender mais discos, ou de mostrar o apêndice num ensaio sensual na Revista Putas para aumentar seu cachê nos shows.
Não estou querendo dar uma de puritano, meu assunto aqui é autenticidade: se a personalidade, os valores, a história, enfim, se aquilo que faz da Sandy a Sandy combinassem com o jeito “safadinha” de ser, aí seria extremamente autêntico ela posar nua em revista, participar seminua de reality show... Mas aí ela não seria a Sandy.
O pior é quando, em vez de autenticidade, enxergam falsidade no jeito da Sandy. Já vi várias pessoas dizendo: “Ela quer dar uma de santa!”. Se minha intuição é tão boa quanto eu acho que ela é, a Sandy lida muito bem com sua sexualidade, mas entre quatro paredes, e com o marido dela. O que as pessoas têm que entender é que ela é uma mulher que foi criada com muito cuidado por pais bastante conservadores, e que ela herdou dos pais esses valores. Se ela resolvesse fingir ser quem não é para “agradar” quem a chama de “santinha do pau oco”, aí sim ela estaria praticando uma violência contra si. Violência essa que quase todas as pessoas cometem o tempo todo simplesmente por não se conhecerem, por não se respeitarem, simplesmente por não serem autênticas como são essas grandes mulheres pequenininhas Sandy e Simone de Beauvoir.
sexta-feira, 3 de setembro de 2010
As meninas de hoje
Era o primeiro dia de aula quando ele a viu pela primeira vez, sentiu uma coisa que nunca tinha sentido e pensou: “Eu acho que vou amar essa menina pra sempre.” Dia seguinte, a professora: “Paulo Henrique, sua redação foi a melhor. Venha aqui na frente e leia para nós.” Ele lê. Voltando para a sua carteira, ele passa olhando nos olhos dela, pareciam ainda mais lindos. Ela retribui com um olhar doce e diz: “Redaçãozinha de amor, que podre!”
domingo, 29 de agosto de 2010
Superman e o anel dos nibelungos
O que penso dos EUA é que eles são uma nação admirável. Eu sei que isso deve ter soado, para a maioria de vocês, algo como que ofensivo, ou estúpido, se não ambas as coisas. Sem dúvida mais ofensivo do que se eu estivesse elogiando países como a Coréia do Norte, o Iran ou o Sudão.
Um país, só isso
No entanto, eu vejo os EUA como aquilo que eles são: não uma organização internacional, não uma ONG, nem uma segunda Santa Sé. Os EUA são um país, e, como tal, são conduzidos por um presidente da república e não pelo papa, nem pelo Dalai Lama. Sendo um país como qualquer outro, sua política externa é voltada para a busca dos interesses nacionais.
O que nubla a percepção de muita gente é a ideia de que os EUA deveriam atuar em busca dos interesses da humanidade, ou segundo princípios de bondade ou justiça, ou seja, como se fossem o superman mesmo: em defesa dos fracos e oprimidos e por causa do mais puro altruísmo.
Mas o superman não existe. Nem o papai Noel. E se você tem mais de 7 anos de idade, também não deveria acreditar mais nisso.
Complexo de superman
No entanto, o superman diz muito sobre a ideia que os americanos fazem de si mesmos, e, o que é pior, sobre a ideia que as pessoas no resto do mundo fazem de como deveria agir os EUA. Esse é o que chamo de complexo de superman.
Essa mania de analisar a política externa norte-americana em bases morais é uma criação dos próprios norte-americanos. Desde Woodrow Wilson os EUA insistem em justificar sua política externa em termos morais, fundamentando-a em altos princípios de justiça.
As prostitutas e a falsa virgem
A insistência dos norte-americanos nessas justificativas morais – muitas vezes pouco consistentes – fortalece o antiamericanismo latente no mundo. O antiamericanismo não é fruto disso, mas ganha com isso muito combustível para queimar. Países com políticas externas absolutamente amorais ou mesmo imorais se arvoram o direito de criticar a política externa americana justamente em termos morais – é a história das prostitutas falando mal da falsa virgem.
A relação entre democracia e moralidade
No entanto, as democracias impõem uma nova variável no estabelecimento do que é o interesse nacional: a opinião pública – esta fez com que a política externa americana acabasse adotando de fato alguns princípios de moralidade.
Foi a democracia norte-americana que impediu a materialização de um império mundial sob seus pés durante os seis anos após a II Guerra em que os EUA gozaram de um monopólio nuclear. Refiro-me ao conceito clássico de império, cujo maior expoente foi Roma, não ao conceito contemporâneo forjado por Lênin. Uma política externa tradicional, que não tivesse que agradar a opinião pública interna, teria usado essa abissal superioridade militar para simplesmente forçar na marra a manutenção desse monopólio nuclear, o que daria ensejo à formação de um império mundial de facto.
A renúncia ao império mundial
O erro de alguns analistas em perceber essa situação do pós-guerra é pensar que os EUA teriam que fazer uma guerra contra a URSS para impor a manutenção desse monopólio.
Um pouco de conhecimento estratégico desfaz essa idéia. Em um período em que os EUA já dispunham de dezenas de bombas nucleares com plena operacionalidade aliada a uma então imbatível superioridade aérea, isso não seria uma “guerra”, seria uma “operação diplomático-militar” de bombardeios nucleares e ofensivas diplomáticas sucedidas por mais bombardeios nucleares e mais ofensivas diplomáticas. Eles não teriam que invadir, teriam apenas que começar a destruir as principais cidades russas até forçá-los a “cooperar”. Hiroshima e Nagazaki provam tanto a viabilidade militar quanto a inviabilidade política dessa estratégia nos EUA, pois a terrível impopularidade que essas ações no Japão gozam até hoje nos EUA – sem falar do complexo de culpa crônico que gerou nos americanos – provam que nenhum presidente americano se sustentaria no poder se tentasse empreender uma política tão imoral.
E se o “anel dos nibelungos” caísse em outras mãos?
Já uma política externa tradicional, sustentada por um país tradicional, teria imposto tal império com uma facilidade constrangedora. Como exercício didático, basta imaginar o desenrolar da História caso o destino tivesse premiado com esse monopólio as mãos alemãs (não obrigatoriamente as dos nazistas), ou se esse privilégio coubesse aos soviéticos. Esse exercício pode se alongar indefinidamente, se começarmos a imaginar que utilização seria dada a essa ferramenta pelos franceses, pelos italianos, pelos britânicos, ou mesmo pelos argentinos, chineses ou japoneses... Esse exercício, quando feito por alguém com imaginação ponderada, deixa claro a excepcionalidade da política externa norte-americana.
Um mundo cheio de países
O fato que passa despercebido é que a opinião pública norte-americana funciona como um colchão moral que amortece os rigores da utilização do vasto poder daquele país. No entanto, não elimina esse poder nem retira os interesses nacionais do centro de sua condução política – o que é natural.
Tendo claro a distância de poder que separava os EUA do resto do mundo no período imediatamente posterior à II Guerra, fica claro que o fato de o mundo possuir hoje cerca de 190 países com o direito de hastear uma bandeira, ter um hino nacional e se dizer independente, e desses pelo menos 9 poderem provar essa independência na marra se perciso, isso é consequência de um capricho do destino chamado Estados Unidos da América.
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
Meus temas recorrentes
Escrevendo esse blog, ficou mais claro para mim que tenho certos temas recorrentes. Mas acho que todo mundo tem seus temas recorrentes, aqueles assuntos que vira e mexe se está pensando sobre e discutindo a respeito. Acho que os temas recorrentes de uma pessoa dizem mais sobre ela do que suas origens, sua história e sua família. A análise do porquê de esses temas serem tão importantes para uma pessoa é um prato cheio para qualquer psicanalista. Eu não sou psicanalista, não sei me analisar. Mas pelo menos consigo listar meus temas recorrentes. Eles são três.
O primeiro eu intitulei carinhosamente de O Muro de Berlim. O embate entre esquerda e direita é uma verdadeira obsessão minha. Infelizmente isso raramente é de grande interesse para as outras pessoas, o que faz com que esse assunto seja responsável por pelo menos 80% dos momentos em que eu sou considerado “um saco”. Mas eu simplesmente não consigo me conter, quando vejo estou falando sobre isso e as pessoas saindo de perto como se eu tivesse soltado um pum. Principalmente porque, no Brasil, ou as pessoas são despolitizadas ou são de esquerda, e minha obsessão é sempre explicar por que eu considero os líderes de esquerda (Stálin, Mao Zedong, Pol Pot, Fidel Castro) uns genocidas filhos de uma p.... Meus textos sobre esse assunto são os menos comentados (e lidos) – o que é compreensível.
O segundo eu chamo de Guerra dos Sexos. As diferenças entre homens e mulheres e a relação entre esses seres de Marte e de Vênus me interessam mais do que o chocolate interessa às mulheres. Felizmente, nesse caso, a maioria das pessoas também compartilha desse interesse. Conscientemente, quando quero me divertir e divertir quem está perto, toco nesse assunto. Meus textos sobre isso são os mais lidos e comentados também. Talvez eu devesse escrever mais sobre isso...
O terceiro eu chamo de Crepúsculo do Macho. O estereótipo que as pessoas fazem da figura masculina e a maneira como um homem deve se portar para ser visto como viril é algo que me interessa simplesmente porque eu não concordo com a visão geral e nunca me enquadrei nela. Eu nunca fui aquele macho típico goiano que coça o saco e cospe no chão e nunca achei que devesse ser assim, aliás eu me recuso. Ser educado e fino hoje (pelo menos em Goiânia) é pedir para as pessoas acharem que você é gay – o revoltante não é imputarem uma homossexualidade que não existe e sim essa ideia de que só os gays e as mulheres têm o direito de serem finos e educados. O que foi feito de James Bond e Fred Astaire afinal?! Mas esse é um assunto no qual eu penso muito mas discuto pouco porque eu tendo a perder a paciência com quem eu estou discutindo e agir com mais grosseria do que nenhum macho típico goiano seria capaz.
Por fim, um dos meus maiores interesses é saber quais os temas recorrentes das pessoas ao meu lado. Já notei que quase ninguém sabe conscientemente quais são os seus próprios temas. Portanto, não adianta perguntar, eu tenho que observar e descobrir. Eu sei quais os temas recorrentes dos meus amigos próximos melhor do que eles mesmos. Tenho um amigo que tem obsessão pelo que ele chama de “estilo” (estética, aparência), outro que filosofa o dia inteiro sobre “como curtir bem a vida” e um outro que pensa o tempo todo em sexo.
E você? Quais são seus temas recorrentes? Eu adoraria saber...
terça-feira, 13 de julho de 2010
Associação dos Personagens de Piada Desempregados
Nós da Associação dos Personagens de Piada Desempregados gostaríamos de registrar o descaso das autoridades com a nossa situação. Desde que o pessoal do MPC – Movimento Politicamente Correto – surgiu, nossa situação vem piorando a cada dia.
O que vem nos mantendo minimamente é que temos nos apoiando uns nos outros: contando piadas uns dos outros.
A loira conta piadas de português para o português, conta para ver se o português explica, porque ela também não entende... A situação para os dois é ainda mais difícil porque eles disputam a mesma fatia do mercado. Ela começou perguntando para o gaguinho, mas não deu muito certo...
O português explica as piadas para a loira com as interpretações mais absurdas enquanto o judeu filma essa cena impagável e coloca à venda no Mercado Livre – aliás ele manda dizer que aceita todos os cartões, basta mandar os cartões pelo Correio com as respectivas senhas.
O negro saiu da cadeia pela terceira vez... por contar piada de preto, mas foi porque ele só sabe contar piada de preto – crime imprescritível, inafiançável, quase inenarrável. Para não ter mais problemas com a lei, ele anda pegando aulas com o gordinho, que inclusive só sabe contar piadas de gordo também (o que é bem melhor: não dá cadeia). É triste a situação do gordinho: com a crise, ele pode até passar fome e emagrecer... Aliás, ele já comeu todos os papagaios do grupo, o que causou uma perda inestimável...
O único que ainda não passa por sérias dificuldades é a bichinha: Ela comenta: “Bofe, escândalo! Bafôn! A barbie aqui, absoluta, ne-ces-sá-ria, não ia nunca se juntar a essas bagaceiras, horroroooooozas, bi! Não inveja, se joooga!!”.
quarta-feira, 9 de junho de 2010
Estrada seca
Uma estrada chamada sonho
Um sonho balançando na frente
que nem doce para criança
O doce saliva a boca
A boca pede um beijo
O beijo fica para outra hora
agora é hora de caminhar
A estrada pede meus passos
Os passos pedem meu amor
Cada raspa, cada gota
espalhadas em linha reta no asfalto quente
escorrem dos pulsos abertos
Gente parada no acostamento
"Moço, dá uma moeda?"
"Desculpa, eu não tenho."
Eu sigo andando descalço
Faz três anos que ela fugiu de casa
foi de mudança para o futuro
suspira, são saudades do dono
O dono angustiado chora uma prece
suspira, são saudades da alma.
sexta-feira, 21 de maio de 2010
O que aconteceu ao gentleman?
Então, o que aconteceu afinal com homens como ele? Homens como Astaire, como Sinatra, como Tom Jobim. Gentlemen. Cavalheiros. Eu não sei. Mas, o que quer que seja, aconteceu também com as damas. Façamos uma lista: um gentleman é educado, inteligente, esperto, talentoso, modesto, bem arrumado e culto. Por que será que os caras de hoje têm tanto medo de possuir esses traços de personalidade?
Talvez seja porque eles estejam muito ocupados em ser rudes uns com os outros em público, em ficar bêbados de vomitar e em arrumar brigas na frente das garotas para que – dessa maneira genial – ninguém venha a pensar que eles tenham qualquer tipo de atração por outros homens. Aliás, quem inventou essa idiotice de que os gays são mais bem educados do que os heterossexuais? Qualquer pessoa que conheça uma meia dúzia de gays sabe que eles podem ser (e que de fato são) tão rudes e grosseiros quanto qualquer heterossexual. E qualquer um que saiba quem é Tom Jobim sabe que não há como ser mais bem educado do que aquele perfeito gentleman foi.
Mas e o gentleman? Bem, o cara para ser um gentleman hoje em dia tem que se conhecer bem e ter fé no seu taco o suficiente para ser ele mesmo independentemente do que os outros vão pensar. E então aparece um jeca (ou uma jeca) para nos carimbar o rótulo um tanto pejorativo de “metrossexual”. Não! Ser um homem que tem cuidado com a maneira como se apresenta e com a maneira como lida com as outras pessoas é simplesmente ser um cavalheiro. E ponto.
Os homens de hoje estão perdidos, coitados. Eu tenho visto tantos caras sem saber o que fazer, em dúvida sobre como deveriam agir em determinada situação. E no fim fazendo exatamente o oposto do que seria mais apropriado. Tanta grosseria para esconder tanta falta de confiança... Nossos avôs saberiam exatamente como agir, e os pais deles também, e os pais dos pais deles. A masculinidade está hoje
É por isso que os poucos homens que redescobrem o cavalheirismo se sentem mais confiantes consigo mesmos e se tornam homem melhores (sim: melhores). As próximas gerações não têm saída: terão que redescobrir o cavalheirismo para poderem se descobrir homens. Já os homens dessa nossa geração vão, na sua maioria, envelhecer como meninos, como moleques velhos que nunca aprenderam a arte, passada gerações a fio, de como se deixa de ser um moleque e como se passa a ser um homem: enfim, a arte do cavalheirismo.
segunda-feira, 3 de maio de 2010
A banana da bananada
Acho que foi um indígena norte-americano que, num misto de admiração e medo, explicou o que sentia aos colonizadores ingleses: “Se você tem uma tradição e come da carne de outras tradições, você aumenta sua tradição, aumenta o rabo dela. Mas se você abandona sua tradição e passa a comer só da carne de outra, você deixa de ser cabeça e passa a ser rabo: que não sabe para onde vai, apenas segue”.
O indígena estava preocupado com a influência do colonizador. Tinha todas as razões para isso. Mas, além da influência de uma cultura sobre a outra, há divisões internas de uma cultura que também se influenciam – uma divisão desse tipo é aquela imposta pelos que se vêem como possuidores de um gosto superior, mais apurado: entram aí a “alta cultura”, a “cultura erudita”, as “vanguardas” e afins. Essa divisão está representada no mito da rivalidade entre os deuses Apolo e Dionísio.
Apolo e Dionísio são dois dos principais deuses do panteão latino. Deuses de várias coisas, entre elas, da arte. Ambos são considerados os deuses da arte – isso gera muita confusão, mas é a representação mitológica do fato de haver, sob uma única palavra, dois sentidos distintos (mas nem tanto): a arte dionisíaca e a arte apolínea.
Dionísio usa a arte como um meio para alcançar o deleite da carne, o deleite mundano. Aliás, ele é o único importante deus latino que é filho de uma humana.
Já Apolo busca o deleite na contemplação do belo, o deleite divino. Este é o deus daqueles que ficam enojados com a arte de entretenimento e a consideram como indigna ou mesmo como profana, é o caso do crítico de cinema que adora Godard e sente ânsias assistindo “Duro de Matar III”.
Porém, de tempos em tempos, a arte dionisíaca merece o interesse dos apolíneos.
Vejamos o caso da música popular.
O jazz dos EUA, até os anos 20 do século passado, era visto com completo desprezo por aqueles que se pretendiam a elite cultural norte-americana. É nos anos 30 que o jazz começa a ser visto como uma forma “verdadeira” de arte por eles. Aliás, os apolíneos dividem a arte em “verdadeira e falsa”. Os dionisíacos a dividem mais como “divertida e chata”.
O swing jazz foi o ritmo mais popular do mundo em seu tempo e era, como é até hoje, absolutamente desprezado pelos refinados amantes do jazz.
Talvez nunca os apolíneos modernos aceitem o fato de que a maioria das pessoas sempre cultuará a Dionísio. E só. Os gregos lidavam muito bem com isso: chamavam essa incapacidade natural da maioria das pessoas de se deleitarem com o belo de apeirokalia. Viam como um simples fato da vida. A grande maioria não quer o belo: quer o vinho e quer a farra. O swing jazz foi mais popular que o cool jazz não por falta de acesso do povo à cultura, por falta de educação deste, por falta de vergonha na cara ou por qualquer uma dessas desculpas que os apolíneos vivem inventando. O swing jazz, assim como o sertanejo, como a banda Calypso e como o rock’n roll em suas origens (para o estranhamento dos roqueiros de hoje, que são apolíneos) eram mais populares porque eram filhos bêbados, animados e depravados do deus Dionísio – bem do jeito que o povo gosta.
O mesmo aconteceu com o samba carioca. Foi Mário de Andrade que adotou o samba como a pedra fundamental de seu projeto de cultura nacional apolínea. E foi sob a indicação desse bispo da igreja apolínea do Brasil que o samba recebeu então o selo episcopal de “arte verdadeira”. A dedicação dos apolíneos fez surgir o samba canção, abossa nova e parte do que chamamos de MPB.
O melhor disso é que, diferentemente dojazz, o nosso samba – como uma mulata assanhada – deu cria pra todo lado, não só com o belo e garboso do Apolo (como ocorreu com o jazz), mas também com o depravado do Dionísio. Hoje temos o “pagodinho”, por exemplo, que, como todo filho legítimo de Dionísio, possui duas características inescapáveis: a primeira é ser extremamente popular, e a segunda é atrair o mais sincero nojo dos apolíneos. E temos hoje o chamado samba cult, o meio-irmão do outro, mais bem vestido, obediente à mãe e com a cara de sério do pai, Apolo. Como toda cria genuína de Apolo, um primado de virtude e beleza combinado com o absoluto desprezo por parte da sempre filistina massa popular.
Já, aqui em Goiás, nossos apolíneos nunca se animaram em comer da carne cultural local. Nossa chamada “música sertaneja” nunca foi assediada pelo deus Apolo, nunca recebeu dele nem uma cantadinha, um fiu-fiu, um olhar cobiçoso que fosse, nada. Desprezada pelo belo deus, ela só namora o deus bêbado. Nisso, toda sua produção é como que um sinônimo do dionisíaco brasileiro. Falar em música sertaneja hoje é o mesmo que falar em festa, bebidas, alegria, farra, e nem um pingo de pretensão estética – tudo cheirando ao álcool do deus bebum –, aliás, essas são as mesmas coisas que se poderia dizer do swing jazz e do samba carioca nos anos 30.
Registro aqui meu lamento: gostaria de ver os filhos que a música popular goiana daria com Apolo. É um lamento porque sei que não os dará. Os apolíneos daqui satisfazem seus anseios investindo em outras tradições. Goiânia tem uma das cenas de rock mais fortes do Brasil e não é à toa. É uma indignada reação de oposição à própria tradição cultural. E a festa que nossos apolíneos fazem na mesma semana da Festa Agropecuária (a principal festa dionisíaca desse Estado) é chamada de “Bananada”, isso porque simboliza “dar uma banana” para o sertanejo e para o que ele representa. Na verdade, a banana não é para a cultura sertaneja, é para Dionísio (serviria então para o Calypso, a Micareta, o “pagodinho”, a Britney Spears e afins). Dionísio deve vomitar vinho de tanto gargalhar vendo a supremacia que seus sátiros impuseram a toda nossa cultura. Quem recebe a banana é a cultura goiana. Ela fica com a banana do Dionísio na mão.
Marcelo Barra, Fernando Perillo, Maria Eugênia e congêneres são outro caso. Eles são apolíneos da cultura musical urbana goiana novecentista – original principalmente da antiga Vila Boa e de Pirenópolis–, com suas modinhas e serestas. Representam uma sub-cultura goiana preciosa, mas menos pujante – talvez como o choro em comparação com o samba – e que, absolutamente ignorada pelos nossos dionisíacos, também não recebe a menor atenção dos nossos fiéis apolíneos. Abandonada, ela só se mantém sendo artificialmente bancada pelo Estado. Os nossos apolíneos aqui – quase todos – são devotos é do rock’n roll.
O roqueiro que estiver lendo isso talvez pense: “Apolíneos?! Nós somos irreverentes, bêbados e abusados. Somos filhos de Dionísio!”. Não são. Não os de hoje. Esses artifícios que simulam traços dionisíacos estão inseridos numa pretensão estética elitista e quase pedante. Se o rock ainda fosse dionisíaco como foi no início, os roqueiros atuais cuspiriam nele. A obsessão por sentir que fazem parte de uma elite cultural (aliás, o rock’n roll como símbolo elitista é um dos acontecimentos mais esquisitos da história cultural ocidental) os impede de olhar para qualquer coisa verdadeiramente dionisíaca sem o esnobismo de uma princesa de Versalhes.
É aí que me vejo na mesma situação daquele índio apache, pensando no que será dessa nossa cultura sendo que nossos apolíneos – que são as pessoas capazes de dar novas dimensões estéticas a uma expressão artística – se tornaram rabo de outras tradições. O rock aqui não é colocado a serviço da nossa tradição, como Caetano Veloso o fez com a maestria do gênio, nem como mistura enriquecedora, como aconteceu no reggae jamaicano. O rock aqui vem seco, chapado, sem suco pra engolir. Olho para os nossos roqueiros goianos e vejo os meninos japoneses que vi tocando samba – e que mereceram toda a minha complacência, a complacência que reservamos para quem nos é inofensivo e desimportante.
Enquanto isso os dionisíacos aqui ofendem. E importam. E nós ficamos com a banana na mão.