O que penso dos EUA é que eles são uma nação admirável. Eu sei que isso deve ter soado, para a maioria de vocês, algo como que ofensivo, ou estúpido, se não ambas as coisas. Sem dúvida mais ofensivo do que se eu estivesse elogiando países como a Coréia do Norte, o Iran ou o Sudão.
Um país, só isso
No entanto, eu vejo os EUA como aquilo que eles são: não uma organização internacional, não uma ONG, nem uma segunda Santa Sé. Os EUA são um país, e, como tal, são conduzidos por um presidente da república e não pelo papa, nem pelo Dalai Lama. Sendo um país como qualquer outro, sua política externa é voltada para a busca dos interesses nacionais.
O que nubla a percepção de muita gente é a ideia de que os EUA deveriam atuar em busca dos interesses da humanidade, ou segundo princípios de bondade ou justiça, ou seja, como se fossem o superman mesmo: em defesa dos fracos e oprimidos e por causa do mais puro altruísmo.
Mas o superman não existe. Nem o papai Noel. E se você tem mais de 7 anos de idade, também não deveria acreditar mais nisso.
Complexo de superman
No entanto, o superman diz muito sobre a ideia que os americanos fazem de si mesmos, e, o que é pior, sobre a ideia que as pessoas no resto do mundo fazem de como deveria agir os EUA. Esse é o que chamo de complexo de superman.
Essa mania de analisar a política externa norte-americana em bases morais é uma criação dos próprios norte-americanos. Desde Woodrow Wilson os EUA insistem em justificar sua política externa em termos morais, fundamentando-a em altos princípios de justiça.
As prostitutas e a falsa virgem
A insistência dos norte-americanos nessas justificativas morais – muitas vezes pouco consistentes – fortalece o antiamericanismo latente no mundo. O antiamericanismo não é fruto disso, mas ganha com isso muito combustível para queimar. Países com políticas externas absolutamente amorais ou mesmo imorais se arvoram o direito de criticar a política externa americana justamente em termos morais – é a história das prostitutas falando mal da falsa virgem.
A relação entre democracia e moralidade
No entanto, as democracias impõem uma nova variável no estabelecimento do que é o interesse nacional: a opinião pública – esta fez com que a política externa americana acabasse adotando de fato alguns princípios de moralidade.
Foi a democracia norte-americana que impediu a materialização de um império mundial sob seus pés durante os seis anos após a II Guerra em que os EUA gozaram de um monopólio nuclear. Refiro-me ao conceito clássico de império, cujo maior expoente foi Roma, não ao conceito contemporâneo forjado por Lênin. Uma política externa tradicional, que não tivesse que agradar a opinião pública interna, teria usado essa abissal superioridade militar para simplesmente forçar na marra a manutenção desse monopólio nuclear, o que daria ensejo à formação de um império mundial de facto.
A renúncia ao império mundial
O erro de alguns analistas em perceber essa situação do pós-guerra é pensar que os EUA teriam que fazer uma guerra contra a URSS para impor a manutenção desse monopólio.
Um pouco de conhecimento estratégico desfaz essa idéia. Em um período em que os EUA já dispunham de dezenas de bombas nucleares com plena operacionalidade aliada a uma então imbatível superioridade aérea, isso não seria uma “guerra”, seria uma “operação diplomático-militar” de bombardeios nucleares e ofensivas diplomáticas sucedidas por mais bombardeios nucleares e mais ofensivas diplomáticas. Eles não teriam que invadir, teriam apenas que começar a destruir as principais cidades russas até forçá-los a “cooperar”. Hiroshima e Nagazaki provam tanto a viabilidade militar quanto a inviabilidade política dessa estratégia nos EUA, pois a terrível impopularidade que essas ações no Japão gozam até hoje nos EUA – sem falar do complexo de culpa crônico que gerou nos americanos – provam que nenhum presidente americano se sustentaria no poder se tentasse empreender uma política tão imoral.
E se o “anel dos nibelungos” caísse em outras mãos?
Já uma política externa tradicional, sustentada por um país tradicional, teria imposto tal império com uma facilidade constrangedora. Como exercício didático, basta imaginar o desenrolar da História caso o destino tivesse premiado com esse monopólio as mãos alemãs (não obrigatoriamente as dos nazistas), ou se esse privilégio coubesse aos soviéticos. Esse exercício pode se alongar indefinidamente, se começarmos a imaginar que utilização seria dada a essa ferramenta pelos franceses, pelos italianos, pelos britânicos, ou mesmo pelos argentinos, chineses ou japoneses... Esse exercício, quando feito por alguém com imaginação ponderada, deixa claro a excepcionalidade da política externa norte-americana.
Um mundo cheio de países
O fato que passa despercebido é que a opinião pública norte-americana funciona como um colchão moral que amortece os rigores da utilização do vasto poder daquele país. No entanto, não elimina esse poder nem retira os interesses nacionais do centro de sua condução política – o que é natural.
Tendo claro a distância de poder que separava os EUA do resto do mundo no período imediatamente posterior à II Guerra, fica claro que o fato de o mundo possuir hoje cerca de 190 países com o direito de hastear uma bandeira, ter um hino nacional e se dizer independente, e desses pelo menos 9 poderem provar essa independência na marra se perciso, isso é consequência de um capricho do destino chamado Estados Unidos da América.
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